Foi
em pleno inverno de 1944 que a fome tornou-se crítica nas cidades do oeste da
Holanda, então ocupada pelos nazistas. O evento sem precedentes de falta de
alimentos no país ficou conhecido como o “inverno da fome”.
Um
pequeno grupo de pessoas, no entanto, não estava sofrendo tanto quanto o
esperado. No Hospital Infantil Juliana, na cidade de Hague, o pediatra Willem
Karel Dicke percebeu que as crianças celíacas sob seus cuidados estavam
melhorando, apesar de passarem fome como as demais.
Os
médicos já conheciam a celíase há muitos anos, mas não havia consenso sobre sua
causa, e muito menos como tratar a doença. Foi o médico grego Aretaeus da Capadócia
(100 A.D.) que descreveu pela primeira vez uma enfermidade estranha, com
sintomas como fraqueza, desnutrição e diarreia, que ele denominou de koiliakos.
Hoje
sabe-se que a doença celíaca é uma desordem gastrointestinal de origem autoimune.
Os portadores da DC têm uma reação severa ao glúten, uma proteína encontrada em
grãos como o trigo ou a cevada, entre outros. Pode ser um desafio
diagnosticá-la, mas uma vez identificada, seu tratamento é relativamente
simples: adotar uma dieta livre do glúten.
Mas
antigamente a celíase era um mistério frustrante para os médicos. E, para
piorar, o efeito nas crianças era ainda mais nocivo ao organismo. Na época, a
celíase muitas vezes era uma sentença de morte. Ao inflamar o intestino delgado
e causar desnutrição, a doença poderia prejudicar irremediavelmente o
crescimento físico e o desenvolvimento mental. Crianças com DC avançada sofriam
com sintomas terríveis: erupções cutâneas, membros atrofiados e estômagos inchados, como os de vítimas da fome.
Quando
o Dr. Dicke entrou no campo de pesquisa, outros já vinham trabalhando em uma
cura. A primeira causa a ser descartada foi a da fonte bacteriológica,
especialmente por afetar crianças de todas as classes sociais. Na verdade, a
doença afetava particularmente as crianças mais ricas (embora as mais pobres
sucumbissem mais rapidamente à doença).
Uma
única coisa parecia funcionar: a dieta da banana. O médico norte americano
Sydney Haas começou a promover a banana como a fonte da cura em 1924, acreditando
que carboidratos complexos, como o amido, eram os culpados. Bananas maduras quase
não contêm amido. Para sorte das crianças celíacas, a fruta também não contém
glúten. A teoria de Haas foi amplamente divulgada, e recebeu tanto apoio das
companhias distribuidoras de banana que colegas do médico o acusaram de fazer
propaganda paga.
Enquanto
isso, os pais procuravam desesperadamente pela fruta para seus bebês doentes.
Embora o Dr. Hass provavelmente tenha salvo muitas vidas, sua crença na dieta
da banana como a solução para uma cura permanente não podia estar mais errada. Adultos
portadores da DC reintroduziam o trigo e outros grãos em suas dietas, quase
sempre com efeitos deletérios.
Mas
o Dr. Dicke há muito tempo suspeitava que o trigo era o principal vilão da
estória. Em 1932 o pediatra compareceu a um encontro da Sociedade Holandesa de
Pediatria, onde outro médico apresentou um ‘pó medicinal’ para combater a
celíase. No entanto, este pó às vezes era administrado juntamente com pão e
marmelada. O Dr. Dicke notou que os relapsos correspondiam ao consumo de pão.
Em 1936, no mesmo ano em que ele tornou-se diretor do Hospital Infantil Juliana,
aos 31 anos de idade, ele começou uma observação de longa duração de uma
criança com celíase. No hospital, o menino começou uma dieta sem trigo. Mas,
quando ele voltou para casa, os pais reintroduziram a dieta normal, contra a
vontade do pediatra. Quando o Dr. Dicke mapeou os padrões de crescimento do
garoto, eles correspondiam ao tempo em que passou em casa e hospitalizado. Mas
a guerra estava se aproximando. Em 1940 a Alemanha invadiu a Holanda, e os
próximos anos foram brutais. E o Dr. Dicke avisou aos colegas que a dieta da
banana tornara-se inviável, dado o racionamento de comida, e a solução seria
uma dieta sem trigo, apenas um biscoito ocasional, e o mingau doce ou azedo que
não tinha farinha de trigo.
Em
1944, com o crescimento da resistência civil à ocupação nazista, a Alemanha
bloqueou o suprimento de alimentos ao país. Neste período crítico, os
holandeses da região oeste só tinham à mesa pequenas rações de pão, batata e
açúcar de beterraba. Em seu hospital isolado pela guerra, o Dr. Dicke ordenou
que os pequenos pacientes fossem alimentados com bulbos de tulipa. Esta era uma
solução arriscada, já que os bulbos de tulipa tem pouco valor nutricional, além
de conterem glicosídeo, que pode ser tóxico. Mas, para surpresa do pediatra, algo
notável aconteceu. Para as crianças celíacas, o racionamento de comida foi
menos severo que os efeitos tóxicos dos produtos derivados do trigo.
Incrivelmente, enquanto as demais crianças sofriam com a falta de pão, os
pacientes celíacos prosperavam. Quando era oferecido pão, as crianças celíacas
voltavam a adoecer. A taxa de mortalidade infantil em crianças celíacas na
Holanda, durante a escassez de alimentos, caiu de 35 por cento a quase zero.
Com
o fim da guerra, o Dr. Dicke retomou suas pesquisas sobre a celíase, para
provar e registrar suas observações preciosas feitas durante os últimos anos.
Finalmente, em 1950, ele publicou suas descobertas sobre como as farinhas de
trigo e centeio agravavam os sintomas da doença celíaca. Com a ajuda de outros
colegas, mais tarde ele apontou o glúten como a causa final. E, quase
imediatamente, os médicos reproduziram os resultados do Dr. Dicke, e a dieta
sem glúten tornou-se tratamento padrão para a celíase na Europa e Austrália.
Nos EUA, a adoção foi mais lenta, já que a dieta da banana ainda era norma,
graças à influência do Dr. Hass, que rejeitou a descoberta do colega holandês.
Por incrível que pareça, até hoje muitos casos de celíase permanecem sem
diagnóstico na América.
A
Sociedade Holandesa de Gastroenterologia criou um prêmio para agraciar a
pesquisa neste campo, e a primeira medalha Dicke foi dada ao Dr. Dicke. E ele
quase foi premiado com um Nobel, em 1962. Infelizmente, Dicke faleceu neste
mesmo ano, aos 57 anos. O filho do médico, o Dr. Karel A. Dicke, hematologista
e oncologista, lembra-se do pai como um homem modesto, profissional excepcionalmente
dedicado, que viveu por seus pacientes, seu hospital e sua família.
Texto
original de Anne Ewbank (https://www.atlasobscura.com/articles/history-of-celiac-disease),
tradução e adaptação livre de saudesemgluten.blogspot.com.br
Muito interessante, adorei saber!!
ResponderExcluirFiquei impressionada, muito interessante mesmo!
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