segunda-feira, 4 de junho de 2018

Como a Fome na Segunda Guerra Mundial Revelou o Mistério da Causa da DC




Foi em pleno inverno de 1944 que a fome tornou-se crítica nas cidades do oeste da Holanda, então ocupada pelos nazistas. O evento sem precedentes de falta de alimentos no país ficou conhecido como o “inverno da fome”.

Um pequeno grupo de pessoas, no entanto, não estava sofrendo tanto quanto o esperado. No Hospital Infantil Juliana, na cidade de Hague, o pediatra Willem Karel Dicke percebeu que as crianças celíacas sob seus cuidados estavam melhorando, apesar de passarem fome como as demais.

Os médicos já conheciam a celíase há muitos anos, mas não havia consenso sobre sua causa, e muito menos como tratar a doença. Foi o médico grego Aretaeus da Capadócia (100 A.D.) que descreveu pela primeira vez uma enfermidade estranha, com sintomas como fraqueza, desnutrição e diarreia, que ele denominou de koiliakos.

Hoje sabe-se que a doença celíaca é uma desordem gastrointestinal de origem autoimune. Os portadores da DC têm uma reação severa ao glúten, uma proteína encontrada em grãos como o trigo ou a cevada, entre outros. Pode ser um desafio diagnosticá-la, mas uma vez identificada, seu tratamento é relativamente simples: adotar uma dieta livre do glúten.

Mas antigamente a celíase era um mistério frustrante para os médicos. E, para piorar, o efeito nas crianças era ainda mais nocivo ao organismo. Na época, a celíase muitas vezes era uma sentença de morte. Ao inflamar o intestino delgado e causar desnutrição, a doença poderia prejudicar irremediavelmente o crescimento físico e o desenvolvimento mental. Crianças com DC avançada sofriam com sintomas terríveis: erupções cutâneas, membros atrofiados e  estômagos inchados, como os de vítimas da fome.

Quando o Dr. Dicke entrou no campo de pesquisa, outros já vinham trabalhando em uma cura. A primeira causa a ser descartada foi a da fonte bacteriológica, especialmente por afetar crianças de todas as classes sociais. Na verdade, a doença afetava particularmente as crianças mais ricas (embora as mais pobres sucumbissem mais rapidamente à doença).

Uma única coisa parecia funcionar: a dieta da banana. O médico norte americano Sydney Haas começou a promover a banana como a fonte da cura em 1924, acreditando que carboidratos complexos, como o amido, eram os culpados. Bananas maduras quase não contêm amido. Para sorte das crianças celíacas, a fruta também não contém glúten. A teoria de Haas foi amplamente divulgada, e recebeu tanto apoio das companhias distribuidoras de banana que colegas do médico o acusaram de fazer propaganda paga.

Enquanto isso, os pais procuravam desesperadamente pela fruta para seus bebês doentes. Embora o Dr. Hass provavelmente tenha salvo muitas vidas, sua crença na dieta da banana como a solução para uma cura permanente não podia estar mais errada. Adultos portadores da DC reintroduziam o trigo e outros grãos em suas dietas, quase sempre com efeitos deletérios.
Mas o Dr. Dicke há muito tempo suspeitava que o trigo era o principal vilão da estória. Em 1932 o pediatra compareceu a um encontro da Sociedade Holandesa de Pediatria, onde outro médico apresentou um ‘pó medicinal’ para combater a celíase. No entanto, este pó às vezes era administrado juntamente com pão e marmelada. O Dr. Dicke notou que os relapsos correspondiam ao consumo de pão. Em 1936, no mesmo ano em que ele tornou-se diretor do Hospital Infantil Juliana, aos 31 anos de idade, ele começou uma observação de longa duração de uma criança com celíase. No hospital, o menino começou uma dieta sem trigo. Mas, quando ele voltou para casa, os pais reintroduziram a dieta normal, contra a vontade do pediatra. Quando o Dr. Dicke mapeou os padrões de crescimento do garoto, eles correspondiam ao tempo em que passou em casa e hospitalizado. Mas a guerra estava se aproximando. Em 1940 a Alemanha invadiu a Holanda, e os próximos anos foram brutais. E o Dr. Dicke avisou aos colegas que a dieta da banana tornara-se inviável, dado o racionamento de comida, e a solução seria uma dieta sem trigo, apenas um biscoito ocasional, e o mingau doce ou azedo que não tinha farinha de trigo.

Em 1944, com o crescimento da resistência civil à ocupação nazista, a Alemanha bloqueou o suprimento de alimentos ao país. Neste período crítico, os holandeses da região oeste só tinham à mesa pequenas rações de pão, batata e açúcar de beterraba. Em seu hospital isolado pela guerra, o Dr. Dicke ordenou que os pequenos pacientes fossem alimentados com bulbos de tulipa. Esta era uma solução arriscada, já que os bulbos de tulipa tem pouco valor nutricional, além de conterem glicosídeo, que pode ser tóxico. Mas, para surpresa do pediatra, algo notável aconteceu. Para as crianças celíacas, o racionamento de comida foi menos severo que os efeitos tóxicos dos produtos derivados do trigo. Incrivelmente, enquanto as demais crianças sofriam com a falta de pão, os pacientes celíacos prosperavam. Quando era oferecido pão, as crianças celíacas voltavam a adoecer. A taxa de mortalidade infantil em crianças celíacas na Holanda, durante a escassez de alimentos, caiu de 35 por cento a quase zero.

Com o fim da guerra, o Dr. Dicke retomou suas pesquisas sobre a celíase, para provar e registrar suas observações preciosas feitas durante os últimos anos. Finalmente, em 1950, ele publicou suas descobertas sobre como as farinhas de trigo e centeio agravavam os sintomas da doença celíaca. Com a ajuda de outros colegas, mais tarde ele apontou o glúten como a causa final. E, quase imediatamente, os médicos reproduziram os resultados do Dr. Dicke, e a dieta sem glúten tornou-se tratamento padrão para a celíase na Europa e Austrália. Nos EUA, a adoção foi mais lenta, já que a dieta da banana ainda era norma, graças à influência do Dr. Hass, que rejeitou a descoberta do colega holandês. Por incrível que pareça, até hoje muitos casos de celíase permanecem sem diagnóstico na América.

A Sociedade Holandesa de Gastroenterologia criou um prêmio para agraciar a pesquisa neste campo, e a primeira medalha Dicke foi dada ao Dr. Dicke. E ele quase foi premiado com um Nobel, em 1962. Infelizmente, Dicke faleceu neste mesmo ano, aos 57 anos. O filho do médico, o Dr. Karel A. Dicke, hematologista e oncologista, lembra-se do pai como um homem modesto, profissional excepcionalmente dedicado, que viveu por seus pacientes, seu hospital e sua família.

Texto original de Anne Ewbank (https://www.atlasobscura.com/articles/history-of-celiac-disease), tradução e adaptação livre de saudesemgluten.blogspot.com.br

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